#Verificamos: é falso que Papa Gregório IX teria ordenado a matança de todos os gatos, por considerá-los “animais demoníacos”
O ator global
Miguel Falabella, conhecido por seus programas humorísticos, resolveu falar
“sério” nos últimos dias, com o nobilíssimo objetivo de “informar” os pobres
brasileiros, presos em casa por conta do coronavírus. O resultado, no entanto,
foi uma tragédia grega. Segundo Falabella, a culpada pelo surto de Peste Negra
na Europa, durante o século XIV, teria sido a Igreja Católica, porque, em 1232,
o Papa Gregório IX teria ordenado a matança de todos os gatos, por
considerá-los — atenção! — “animais demoníacos”. E sem um predador natural,
concluiu Falabella, os ratos tomaram conta da Europa, espalhando a bactéria da
peste bubônica por toda parte.
Antes de tudo,
já é uma grande piada achar que os gatos, por si só, impediriam o surto de
Peste Negra. Primeiro, porque eles também poderiam ser infectados pela doença e
transmiti-la aos demais. Além disso, gatos não são os únicos predadores
naturais de roedores; nessa lista também se incluem os cachorros, as doninhas,
as cobras e certos pássaros. Portanto, as causas da epidemia foram muito mais
profundas do que uma suposta “carência criminosa” de felinos caçadores. Na
verdade, estudos mais recentes indicam que foram os piolhos dos humanos, e não
as pulgas dos roedores, os responsáveis pela transmissão da doença.
Mas onde há uma
vergonha, há sempre um desavisado querendo passá-la. Não é de hoje que essa
história divulgada por Falabella circula por aí, embora não passe de puro
delírio. O decreto de Gregório IX a que costumam aludir para acusar a Igreja é
o Vox in Rama, endereçado primeiramente ao rei Henrique VII da Germânia e ao arcebispo
de Mainz, Siegfried III. Acontece que nesse documento o Papa não fala
absolutamente nada (nem uma vírgula) sobre matar gatos ou quaisquer outros
animais. A única menção ao bicho está na descrição de um ritual herético em que
havia uma estátua de gato preto, cujas nádegas deviam oscular os participantes
de tão macabra liturgia.
Obviamente, o
Santo Padre estava preocupado com o crescimento dessa seita satânica e, em
razão disso, pediu às autoridades uma posição firme… Mas não os mandou dizimar
gatos. Também não há registro algum de que alguém, em toda a Europa, tenha
interpretado essa carta papal, especificamente, como uma ordem de extermínio.
Até porque aquele era o tempo medieval, não é mesmo?, e, por isso, não havia
comunicação em massa como nos dias de hoje. Portanto, a carta do Papa não
corria o risco de cair num Vatileaks. Ela era reservada a um círculo bem
pequeno de pessoas, porque a preocupação do Santo Padre dizia respeito a uma
região particular da Germânia. Tudo indica que ninguém fora dali soube do
assunto.
Mais ainda, é
preciso ressaltar que o documento também cita a presença de outros animais em
rituais macabros, como sapos, por exemplo. Se a simples menção aos gatos
pudesse ser interpretada como ordem para matá-los, o mesmo teria de valer para
os demais, por pura lógica. Mas nenhum arquivo registra, em toda a história da
Europa, um genocídio batráquico incentivado pela Igreja.
O que se sabe,
de fato, é que em certas regiões da Europa havia, sim, um festival bastante
estranho, em que as pessoas jogavam gatos na fogueira. Daí podem ter vindo as
pinturas do assassinato deles. É precisamente nessa festividade, aliás, que a
cidade de Ypres, na Bélgica, se inspira para realizar o Kattenstoet, que
significa “Festival do Gato”, uma espécie de reparação ao que acontecia
antigamente. Também em 1730 (depois da Idade Média, portanto) houve um
incidente na França, envolvendo tipógrafos aprendizes que, por vingança,
recolheram os gatos de seus mestres e os mataram, sob o pretexto de que eram
utilizados para bruxaria. Esse crime foi narrado pelo escritor Robert Darnton,
no livro The Great Cat Massacre and Other Episodes, que se tornou muito popular
em 1984.
Outra fonte
muito citada pelos detratores da Igreja é o Classical Cats: The Rise and Fall
of Sacred Cat, escrito pelo historiador americano Donald Engels. No epílogo do
livro, Engels afirma que os cristãos odiavam gatos e os relacionavam a
criaturas do demônio. O problema é que o autor, como de praxe, não apresenta
qualquer evidência concreta e incontrastável para tamanha afirmação, mas apenas
a sua interpretação pessoal de casos particulares e documentos pontifícios,
como o Vox in Rama. O historiador Spencer Alexander McDaniel, da Universidade
de Indiana, nos Estados Unidos, dá mais detalhes sobre o embuste num artigo de
seu site, de onde tiramos boa parte das informações para este texto. Vale a
pena conferir.
Houve, sim,
matança de gatos aqui e ali na Idade Média como também em outras épocas. Mas
nada disso jamais aconteceu por ordens de um Papa. Tratou-se apenas de
episódios, entre tantos outros, da brutalidade humana, como sói acontecer em
toda a história. Até hoje há quem queira atirar o pau no gato só para vê-lo
berrar. Mas há também quem queira atirar o pau no Papa, só para culpá-lo do
berro do gato…
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